O crime de lesão corporal, tipificado no art. 129 do Código Penal, por se tratar de um crime comum, possui como sujeito passivo, qualquer pessoa. Porém, na análise da possibilidade de enquadramento do nascituro como sujeito passivo do crime, observa-se que, apesar da limitada jurisprudência no assunto, a maioria dos doutrinadores concordam na impossibilidade desta tipificação. Primeiramente, faz-se necessário analisar que o crime de lesão corporal se encontra dentro do Título I “Dos crimes contra a pessoa” e apesar de o Código Penal não trazer em si qual abrangência da proteção legal dentro do conceito de “pessoa”, o Código Civil, no art. 2°, compreende que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, havendo uma clara distinção entre a proteção de uma pessoa nascida com vida, sendo esta a regra, e a proteção do nascituro, apresentada como a exceção. Desta forma, o que estabelece a personalidade jurídica é o nascimento com vida, havendo o nascituro apenas a expectativa de direitos (CARVALHO, CASTRO, RUDNICKI, 2018).

Apesar disso, se faz elementar ponderar que diferentemente do direito civil, o direito penal possui uma maior tutela de proteção e é por este motivo que há a proteção do feto nos crimes de aborto e seus desdobramentos, presentes nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. Torna-se, assim, inegável a distinção penal de “pessoa” e “nascituro”, e é neste sentido que diversos doutrinadores enfatizam o fato de que somente a pessoa nascida e viva pode ser sujeito passivo do crime de lesões corporais. Isto porque, o legislador foi claro e conciso ao utilizar-se da expressão “outrem”, a qual, partindo da análise do significado da palavra, refere-se a “outra pessoa”. Desta forma, não pode-se enquadrar o nascituro como sujeito passivo de lesões corporais, sendo este somente possível contra o ser humano nascido e vivo.

Observe-se:

 “Até o início do nascimento, qualquer pessoa que atente contra o nascituro incidirá nas penas do delito de aborto (arts.124 a 128, CP)” (CARVALHO, 2009).

“Sujeito passivo é qualquer ser humano vivo, a partir do momento em que se tem por iniciado o parto” (PRADO, 2021, p. 488).

“Especialmente no caso do delito de lesão corporal, o sujeito passivo é a pessoa humana. É o homem vivo.” (SALES JUNIOR, p. 13, 1998)

Este entendimento é reforçado tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, como bem se manifestou o Desembargador Alexandre Victor de Carvalho no julgamento da apelação de número 1.0134.99.012239-9/001, na qual o réu estava sendo acusado de cometer lesões corporais contra o nascituro.

Neste sentido, o magistrado enfatiza que “O crime de lesão corporal só pode ter como sujeito passivo o ser humano vivo, a partir do momento em que se tem por iniciado o parto”. Da mesma maneira, de forma unânime, por esta colenda Câmara julgou-se o Acórdão de número 553177-3, cuja ação objeto do recurso foi uma acusação de homicídio contra nascituros por uma profissional da saúde pela omissão na realização de exames médicos. Partindo deste contexto, julgou-se o recurso mantendo a absolvição contida na sentença de primeira grau com base na atipicidade da conduta, visto que, bem como no crime de lesão corporal, o homicídio também é intitulado como crime contra pessoas, tendo como tutela a vida humana (a saúde e integridade física do ser humano no caso da lesão corporal). Consequentemente, não há a possibilidade de se enquadrar o nascituro como sujeito passivo do tipo.

Observe-se:

“(…) 2. O ordenamento jurídico brasileiro, no art. 121, do Código Penal, tutela a vida humana. Sujeito passivo, portanto, deve ser um ser humano com vida independente, isto é, extrauterina. 3. Não demonstrado nos autos que os gêmeos tiveram vida extrauterina, inexiste o elemento objetivo que caracteriza o crime de homicídio atribuído à ré, sendo o fato atípico, uma vez que não tem adequação na descrição contida na lei”

Diante disso, pode-se observar como o único crime tipificado no Código Penal cujo sujeito passivo é o nascituro é o crime de aborto e seus desdobramentos, não havendo, portanto, a possibilidade de se enquadrar este como sujeito passivo nos crimes de lesão corporal. Assim, qualquer ato que condenar, denunciar ou acusar alguém por lesões corporais contra nascituro é juridicamente ausente de justa causa, na forma do artigo 395, inciso III do Código de Processo Penal. Como demonstrado acima, o nascituro não pode configurar sujeito passivo deste tipo, sendo este protegido pelo crime de aborto e seus desdobramentos, que por sua vez, exigem o dolo especifico da conduta. Não se tratando o caso, nada mais é do que uma conduta atípica para o Direito Penal.


 

Talita Pastore é graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, participa do grupo de competição em direitos humanos (NEDIDH), representando a PUCPR no ano de 2021 na Inter-American Humans Rights Moot Court Competition, além disso também possui dois projetos de iniciação cientifica na área de direito humanos e direito penal.