Nos últimos meses, passou a chamar a atenção a quantidade expressiva de casos envolvendo a fraude às cotas de gênero: foram dezenas de notícias envolvendo a cassação de candidaturas e invalidação da votação de chapas que cumpriram as cotas com candidaturas fraudulentas. Muitos destes casos aconteceram no Paraná: Paranavaí, Maria Helena e Cascavel são os casos mais recentes julgados no TREPR, todos reconhecendo a existência de fraude às cotas de gênero e promovendo a cassação de candidatos eleitos.

Casos como estes lembram as “Juanitas” mexicanas e sua relação deletéria de subordinação política: processado na Corte Superior Eleitoral Mexicana sob nº SUP-JDC 12624/2011, ficou conhecido justamente por se tratar de manobra eleitoral para driblar a legislação de cotas local. No célebre caso, os partidos políticos preenchiam as cotas de gênero com esposas, irmãs, filhas e outras mulheres próximas aos líderes políticos masculinos, que, quando eleitas, cediam seus cargos aos suplentes – representantes do sexo masculino.

A prática em muito se assemelha do que identificamos nos recentes julgados brasileiros: não raro, as cotas são impendidas para “cumprir tabela”, com mulheres em alguma medida subordinadas aos dirigentes partidários e candidatos masculinos, as quais sequer realizam os competentes atos de campanha. Inicialmente, a jurisprudência brasileira, guiada pelo REspe 19392/PI, de relatoria do Ministro Jorge Mussi, identificava duas características essenciais desta espécie de candidatura: a ausência ou baixa expressividade de votos e a ausência ou baixa expressividade da movimentação financeira de campanha. Desde 2019, no entanto, a jurisprudência sofisticou-se significativamente: em pesquisa realizada conjuntamente com a acadêmica Eliz Marina Bariviera, identificou-se ao menos oito hipóteses de verificação de candidaturas fictícias femininas, dentre as quais destacam-se a realização de campanha para outros candidatos de mesmo cargo e a existência de subordinação profissional e/ou familiar da candidata aos gestores e/ou candidatos masculinos – as “Juanitas à brasileira”.

Neste sentido, se observa claramente que os Tribunais Regionais Eleitorais – a exemplo do TREPR – vem exigindo características que ultrapassam aquelas inicialmente delineadas no TSE, razão pela qual o desenvolvimento de pesquisas mais amplas é especialmente útil quando em defesa das Cotas de Gênero. Nos mais recentes julgados, envolvendo os municípios de Maria Helena e Cascavel, ambos no Paraná, observou-se a especial importância dada, por exemplo, à realização de campanha ativa para outros candidatos.

A consequência para o reconhecimento das candidaturas fantasma é gravíssima: ao reconhecer a fraude no registro de uma candidatura feminina, todo o Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários daquele partido é considerado irregular – afetando todas as candidaturas proporcionais nele inscritas.

Se anteriormente a demonstração de prévia ciência dos dirigentes partidários e demais candidatos era essencial para a aplicação das sanções em sede de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, fato é que a jurisprudência nacional vem relativizando tal exigência e apontando uma maior severidade nesta espécie de processo: em recente julgado do Tribunal Superior Eleitoral, o Ministro Alexandre de Moraes reconheceu não ser fundamental a prova do conhecimento prévio da cúpula partidária, posicionamento este que seguramente afetará de maneira profunda os futuros julgamentos sobre o tema.

A insistência dos Partidos Políticos em cumprir cotas de gênero de maneira pro forma diz muito sobre a realidade da mulher brasileira no contexto político: prefere-se investir pouco ou nada em uma candidatura natimorta no lugar de verdadeiramente investir na criação de quadros políticos femininos que sejam efetivamente viáveis. Impossível não lembrar de Rosalba Todaro e sua afirmação de que “existe uma ordem social de gênero que interatua com uma ordem social geral” , constituindo um sistema de relações sociais masculinas e femininas das quais se extrai uma divisão sexual do trabalho: aos homens o espaço público e político, às mulheres o espaço privado. Por isso não surpreende que em dois dos casos mencionados no primeiro parágrafo haja mulheres que trabalham ou trabalharam nas estruturas partidárias – somos úteis organizando os partidos e servindo cafés, mas desprezíveis para os fins públicos e políticos.

Por quanto tempo seguiremos Juanitas à brasileira?

Um dos modernos estudos de soluções para a presente problemática, o Projeto de cotas de gênero difundido pela ONU e pela União Interparlamentar, prevê três tipos de cotas com a finalidade de ampliar a participação de mulheres na representação política, as quais pretende se discutir nesse trabalho. Segundo Dahlerup, professora organizadora do projeto, as cotas de gênero empregadas na política podem ter a seguinte configuração, normalmente replicada nas iniciativas legislativas voltadas para reduzir a sub-representação das mulheres na política: 1. Reserva de assentos para mulheres no Parlamento; 2. Cotas de gênero legalmente exigidas para lista de candidatos; 3. Cotas voluntariamente constituídas pelos partidos políticos.

No Brasil, a legislação aprovada para melhorar as oportunidades das mulheres de ingressarem na vida política tem sido do tipo 2 no esquema proposto por Dahlerup desde 1995, ano em que entrou em vigor a Lei nº 9.100/95, determinado que ao menos 20% das vagas de cada partido ou coligação fossem preenchidas por um dos gêneros. A Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições) elevou o percentual mínimo de cada gênero para 25%, sendo novamente elevado a 30% nas eleições posteriores, percentagem mantida atualmente.

Em adição, no ano de 2009 a reforma eleitoral introduzida pela Lei nº 12.034 instituiu novas disposições na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9096/1995) de forma a privilegiar a promoção e difusão da participação feminina na política ao determinar que os recursos do fundo partidário sejam aplicados na criação e manutenção de programas de inclusão de mulheres em ao menos 5% do total repassado – discussão em voga ante recente decisão que garantiu às candidatas os mesmos 30% dos valores do fundo partidário.

As medidas, no entanto, não vêm impactando como se esperava: e a profusão de processos sobre o tema bem demonstra tal fato: apesar de as cotas estarem em vigor desde 1995, adquirindo o formato atual em 2010, as evoluções vêm sendo bastante tímidas: de 5% de cadeiras no Parlamento Brasileiro em 1990, passamos para 9,9% em 2016. E um montante gigantesco de processos sobre as fraudes nas eleições de 2020.

Há de se anotar que diversos países já obtiveram resultados bastante satisfatórios com as cotas de assento, com média mundial aproximada aos 25% de participação feminina. Não obstante, salienta-se que muito além da a modificação do sistema de cotas brasileiro para a reserva de assentos, uma maior atenção a questões de igualdade de gênero possuiria impactos significativos, vez que em nenhum dos países estudados com participação feminina acima de 20% as cotas de assento vieram dissociadas de políticas públicas de empoderamento feminino .

Novas eleições se aproximam para o ano de 2022 sem qualquer modificação legislativa para garantia de maior representatividade feminina. Cabe a nós a discussão ampla e aprofundada do tema, acompanhada da forte pressão social por políticas públicas de empoderamento feminino e conclamação social por cotas mais efetivas, a fim de que futuramente possamos celebrar a realização dos direitos políticos femininos e a consequente avanço da qualidade democrática brasileira.

Quer saber mais? Leia nossa recente publicação “New elections, old concerns: female political rights as a constant fight”, com as professoras Katya Kozicki e Marina Bonatto na Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas: https://revista.fdsm.edu.br/index.php/revistafdsm.

 

 

REFERÊNCIAS:

TODARO, R. Mujeres ejecutivas em Chiles: uma empresa difícil. In: ZABLU-DVOSKY, G. (Coord.). Mujeres en cargos de direccion en América Latina: estudios sobre Argentina, Chile México Y Venezuela. México: UNAM, Miguel Angél Porrúa Editor, 2002. P. 69-91. In:  PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. 1ª Ed. Curitiba, Ed. UFPR, 2016. p. 59.

Disponível em: https://www.idea.int/data-tools/data/gender-quotas. Acesso em 28 de novembro de 2020.

BERTHOLDI, Juliana; KOZICKI, Kátia; BONATTO, Marina. New Elections and Old Concerns: Female Political Rights as a Constant Fight. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 37 n. 2 (2021). Disponível em: https://revista.fdsm.edu.br/index.php/revistafdsm.

Juliana Bertholdi é advogada e professora (UniOpet e Uninter). Mestre em Direito na área de Direitos Humanos, Justiça e Democracia na PUCPR (2021). Especialista em Direito Eleitoral pelo IDDE (2019). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal e Processual Penal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (2015). Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba do UNICURITIBA – Centro Universitário Curitiba (2014). Associada Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Global Business and Human Rights Scholars Association (GBHRSA). Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Avançados em Direito Eleitoral e Direito Penal Internacional (IBCCRIM). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Direito Internacional: convergências e divergências (CNPq).