O “novo” acordo de não persecução penal, instituído pela Lei 13.964/2019, notoriamente conhecida como “Pacote anticrime”, trouxe um importante instituto despenalizador para a modernização do direito penal.

Ao lado da suspensão condicional do processo e da transação penal, o novo ANPP se consolida como uma forma de “acordo” celebrado entre o Ministério Público e o réu que, assistido de seu advogado, poderá concordar ou não com as condições impostas pelo Estado, em troca de não ver-se processado por um suposto crime em uma ação penal. Isso porque, segundo o dispositivo, não sendo o caso de arquivamento do inquérito policial e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmenete a prática de uma infração penal sem violência ou grave ameaça, e desde que com pena mínima inferior a 04 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Embora seja um instituto importante na teoria, na prática, todavia, tem se revelado bastante arbitrário. Isso porque, pessoas em situações jurídicas idênticas são tratadas de maneiras diametralmente opostas, tudo a depender do Promotor de Justiça que está a frente do caso.

Peguemos como exemplo dois casos absolutamente semelhantes: no primeiro, processado na 10ª Vara Criminal da Capital do Estado X, um acusado pelo delito de porte ilegal de arma de fogo (porém com posse regular), foi beneficiado pelo acordo de não persecução penal.

Até aí, dentro dos limites legais impostos. Tendo em vista que o crime de porte ilegal de armas é crime cometido sem violência ou grave ameaça, possui pena inferior a 04 (quatro) anos e o réu confessou a prática delitiva em Delegacia, o cabimento do acordo de não persecução é inquestionável.

Todavia, mesma sorte não teve outro acusado. Em outra Vara Criminal da mesma capital, réu acusado pelo mesmo delito, teve o direito de celebrar acordo de não persecução penal negado pelo Promotor de Justiça, pois este entendeu como “óbice intransponível ao seu oferecimento, qual seja, a necessidade e suficiência para da medida para a reprovação e prevenção do crime”.

A jurisprudência, no entanto, tem admitido essa escolha. Entende-se, na perspectiva jurisdicional, que o artigo 28-A do Código de Processo Penal não constitui um direito subjetivo do acusado, mas sim uma prerrogativa institucional do Ministério Público, titular da ação penal [1]. Ele não seria obrigado, portanto, a oferecer um acordo, mas teria que fundamentar a razão pela qual está deixando de fazê-lo, até mesmo porque o agente tem direito de saber a razão da recusa pelo Ministério Público, para que possa desenvolver sua argumentação recursal. Trata-se da máxima da ampla defesa.

Discordamos. Isso porque, deixar a escolha do acordo ao subjetivismo do Promotor de Justiça, mesmo quando a lei expressamente o autoriza, além de inaceitável, é inconstitucional por afronta ao princípio da igualdade.

Aury Lopes Junior entende que preenchidos os requisitos legais, se trata de um direito subjetivo do imputado, um direito processual que não lhe pode ser negado [2] . Nesse caso, determina o parágrafo 4 do artigo 28-A que se deve aplicar por analogia o artigo 28 do CPP, com o imputado podendo fazer um pedido de revisão, no prazo de 30 dias, para a instância superior competente do Ministério Público, que poderá manter a decisão de não oferecimento do ANPP ou, ainda, designar outro membro do Ministério Público para oferecer o acordo.

Assim, onde se lê que o Ministério Público pode oferecer o acordo, devemos ler que ele deverá oferecê-lo, a exemplo dos demais institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal, em que já restou definido nesse sentido. Quem traçou a política consensual para o caso, foi o legislador, com o objetivo de evitar o encarceramento de pessoas investigadas pela prática de crimes de média potencialidade lesiva. Não foi deixado nas mãos do Ministério Público o poder de aplicar ou não essa política, de forma discricionária plena. Pelo contrário, regrou-a, estabelecendo balizas para a escolha político-criminal a ser implementada. Cabe ao representante ministerial apenas cumpri-la, assim como o juiz. Afinal, aquele que representa órgãos públicos – incluindo-se, portanto, o representante ministerial – tem o dever-poder de oferecê-lo, quando preenchidos os requisitos legais [3] .

Caberá ao juiz, nesses casos, conceder máxima eficácia dos sistemas dos direitos do réu, ou seja, efetivar sua verdadeira missão constitucional e controlar essa atividade do Ministério Público. Isso porque, ao negar o ANPP e oferecer denúncia, consequência natural da investigação, é lícito ao magistrado, no controle da ação penal, rejeitar a denúncia, posto que, mesmo havendo meio eficaz para a solução do conflito, opta o Ministério Público por procurar o caminho mais burocrático e custoso: a ação penal.

[1] Decisão proferida no AgRg no HC nº. 191.124, do Superior Tribunal de Justiça.

[2] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.  17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

[3] DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. Malheiros/Juspodivm, 2021.

 

Camila Saldanha Martins é advogada e professora (FAPI, Uninter e Cursos Aprovação e O Professor). Mestre em Direito na área de Estado, Jurisdição e Poder na UNINTER (2021). Pós-graduada em Direito Tributário e Processual Tributário pela Universidade Positivo (2019). Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito de Coimbra – Portugal (2019). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade OPET (2015). Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba do UNICURITIBA – Centro Universitário Curitiba (2014). Membro do grupo de pesquisa Recortes da relação entre Judiciário, Executivo e Legislativo na perspectiva penal: a conformação do poder punitivo diante da complexa interação entre poderes (UNINTER). Coordenadora do grupo de pesquisa Ativismo judicial: estudo das decisões dos Tribunais Superiores em matéria de Direito Penal e Processo Penal (FAPI).